segunda-feira, 10 de maio de 2010

Ninho do Sol registra Festa da Colheita dos índios Paresí-Haliti

O Ponto de Cultura Ninho do Sol esteve na Aldeia Quatro Cachoeiras registrando um dos rituais mais importantes dos índios Paresí-Haliti, que habitam a região do Chapadão do Parecis, a Festa da Colheita. Os registros farão parte do acervo do Ponto de Cultura, a ideia é transformá-los em um documentário.
De acordo com o Cacique Narciso, esta foi a primeira vez que a Festa da Colheita foi registrada na íntegra.
A Aldeia Quatro Cachoeiras está localizada a 33 quilômetros da cidade de Campo Novo do Parecis, é um excelente local para o etnoturismo, modalidade turística propícia para esta região.

Leia o artigo e conheça um pouco sobre a Festa da Colheita:
Massa de mandioca brava usada para a fabricação da chicha e do biju

Festa da Colheita: Uma tradição milenar dos Índios Paresí-Haliti

Bem antes de Pedro Álvares Cabral pisar em terras brasileiras eles estavam por aqui. Bem antes de Rondon ou dos Bandeirantes os índios Paresí-Haliti plantavam mandioca brava, faziam biju, chicha e caçavam ema, veado e anta. Há muito tempo, mas há muito tempo mesmo, quando a macaxeira madura, eles comemoram a Festa da Colheita.

Bem pertinho de Campo Novo do Parecis (400 Km de Cuiabá) fica a aldeia Quatro Cachoeiras, que se tornou famosa depois da passagem da Tocha Panamericana Rio 2007 por lá, plantada estrategicamente a margem do bravo rio Sacre, que apresenta índice zero de poluição, o que é bem raro no mundo contemporâneo.

No último final de semana, entre sexta e domingo (07 a 09 de maio), acompanhei a Festa da Colheita, quanto mais conversava com os indígenas mais eu mergulhava em uma história milenar de dominação e luta para preservar a cultura tradicional, agora cada vez mais distante.

Conheci um pouco mais sobre o cacique Narciso, homem que ainda peleja por esta tal preservação da tradição, a qual ele repete incansavelmente enquanto dialoga. Anfitrião da festa, passou o tempo todo andando pela aldeia pra lá e prá cá, vestindo penas coloridas de ema e arara sempre dando atenção aos visitantes.

Cacique Narciso - Anfitrião da Festa

Nas hati, vi mulheres descascando e ralando mandioca “braba” para preparar a chicha, bebida típica fermentada e artesanal de sabor peculiar, que eles chamam de olóniti, e o biju, alimento torrado parecido com tapioca, porém, mais grosso e azedo.

No rio de águas límpidas e traiçoeiras, vi índias adultas seminuas, envergonhadas com a nossa presença, vi garotinhos e garotinhas de quatro ou cinco anos, no máximo, nadando e mergulhando, como peixes, em meio às pedras e correntezas do virgem Sacre. Vi as quedas, quatro quedas, que na língua Haliti se escreve: Zalakuakua Hwomolo, ou simplesmente Quatro Cachoeiras.

Chicha preparada no fogo que nunca apaga (Idikati)

Ouvi o relato sábio e extenuado do cacique geral de todas as aldeias Paresí-Haliti, João Arrezomae, o João Garimpeiro, no fastígio de quase um século de vivência e experiência, com seu português esfolado que soa como se uma criança semi-alfabetizada estivesse falando.

Com propriedade o cacique franzino descreve a história de dominação vivida pelo seu povo desde os tempos dos bandeirantes e a transformação sofrida no período, principalmente, nos últimos 100 anos, desde Marechal Rondon, passando pelos jesuítas e finalmente, chegando a colonização e a posterior contemporaneidade avassaladora.

Quando o sol se pôs completamente, homens, mulheres e crianças, uns de tênis All Star outros de gravata e paletó, entrelaçaram os braços uns nos outros e cantaram músicas tradicionais em seu idioma materno, como se invocassem espíritos, batendo os pés no chão, bebendo chicha e dançando, contornando incansavelmente o mastro central do interior da hati.

Índia Parecis ralando mandioca para preparar chicha

Este ritual uníssono e recursivo, chamado por eles de Zolane, é uma das cerimônias mais importantes da cultura Paresí-Haliti, sempre apresentado em ocasiões especiais. O rito evocativo e cheio de simbolismo atravessou a noite, regrado a carne de ema e veado, biju e tonéis de litros de chicha.

No dia seguinte, ainda de madrugada, as flautas saíram da Casa da Jararaca. Somente homens podem participar e assistir ao êxtase da evocação e inebriação, de certa forma, arrebatador, produzido pelo ritual das Flautas Sagradas. No centro da aldeia (wenakalati), o fogo eterno (idikati) queimava a madeira seca atiçado pelo vento frio.

Extasiados os homens dançavam abraçados uns aos outros, indo de hati em hati, em um processo de invocação dos espíritos ancestrais, depois voltando ao idikati (fogo), ainda bebendo a chicha e agora vomitando cumprindo um ritual de purificação, comum em outras etnias. O delírio deslumbrante dura até que os primeiros raios do sol apareçam.

Crianças Paresí-Haliti da Aldeia 04 Cachoeiras

Finalmente as flautas são recolhidas e as mulheres liberadas a sair do interior da hati para começar a preparação do batismo. Neste rito, feito de forma tradicional e curiosa, cada família se organizava colocando uma grande quantidade de alimentos em um círculo no pátio.

Os que serão batizados saem da hati, um a um, acompanhados de um padrinho até o círculo, onde recebem um novo nome e parte do alimento oferendado, o restante da comida é dividida entre os demais festeiros.

Além de crianças, adultos também são batizados. Os Paresí-Haliti acreditam que depois de um acidente o índio adulto deve ser rebatizado, onde receberá um novo nome e garantia da renovação espiritual. “É como um renascimento”, explica um indígena.

Apresentação de Zolane no interior da Hati

Terminado o batismo, eles se divertem e brincam, é chegada a hora do ‘canto da formiguinha’. Crianças e rapazes ficam em frente das hati dançando e pedindo as sobras da festa. Os adultos inebriados pela noite de farra ainda caçoam das ‘formiguinhas’, rindo e dando a elas os restos da olóniti kalóre, ou grande festa.

Terminados os três dias de festejo, trouxe para casa uma bagagem extraordinária, o respeito pelos indígenas, que já existia antes, se avivou e o sabor da chicha e do biju azedo se eternizará no meu paladar. A singularidade do som, das cores, dos olhares, do cheiro, dos sabores permanecerá viva na minha memória.

Texto de Alexandre Rolim
Fotografias de Sílvia Schneiders e Vanderlei Guollo

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